Numa tarde imensa o tempo não enganava e era curto. Para dizer ou descobrir todas as coisas imensas ali a saltarem do peito que tu não vias nem tinhas tempo para ver. Em contraluz uma ilusão quebrava as horas marcadas. Era o tempo de não haver tempo para desatar nós e laços que como desejos fortes lutavam para existir em liberdade.
Abriu-se uma janela que o vento trazia à vida. Há uma arrogância desumana no sentir que subestima os objectos inanimados. Mas nunca to disse. Não houve tempo. O frio invadia os corpos que acreditamos terem alma. Via-se ao longe um cortejo de carros rodando devagar. Alguém morreu mas isso que importa se o tempo está ocupado na lida que o corpo pede e é calor? De resto os mais bonitos cortejos deste tipo não são estes e sim aqueles que vês numa pintura de Matisse. Na morte a joie de vivre. Peguei então na ilusão tão pura tão bela e reconfortante. Mirei-a atentamente devorei todos os seus lados e analisei perspectivas. Havia uma brecha e por ela dei conta saíam todos os instantes da realidade que urge. Mas na obscuridade o corpo diz sempre beleza e é nela que queremos estar. Eu insisti e coloquei em exposição muito crua a ilusão. Sem jogo de luzes era difícil encará-la. Com cuidado afaguei-a não fosse explodir em milhares de nadas e depois de quebrada não saber como a reconstruir.
Não percebes nada. A ilusão é o cerne da questão. É simples: sem ela não conseguimos viver - foi essa voz de então e a frase dita o que ecoou até hoje nos espaços fechados. Abri eu mesma a janela para afugentar maus-olhados. Tenho pena nunca me ofereceste um espanta-espíritos. Por outro lado melhor assim não fosse ele demasiado eficaz ao ponto de espantar o meu. Julgo seria pena verdade depois não poderia pensar certas coisas que é preciso cogitar.
Naquele tempo levaste a ilusão contigo. Há mais quem precise de se iludir. De lá para cá portas e janelas continuam a abrir-se movidas pela força do vento. Por elas entra um aroma de terra fresca e molhada. Certo génio maligno confessou-me ser este o cheiro da liberdade. Facto é acreditei nele ainda que a claridade do aroma trespasse com brutalidade os olhos quando eles ousam vislumbrar uma qualquer ínfima partícula da realidade.
O sol não está ao rubro e sim de um tom amarelo pálido. Há poeiras pequeninas que douram a atmosfera. Ontem alguém sorriu ao meu lado e era um sem-abrigo. A vida é um espectáculo. Gostava de descrever sensações milimétricas ao estilo da Virginia Woolf. Mas o mundo inteiro espera ser contemplado. Devo ir perder-me no tempo e agir.
Imagem: L'enterrement de Pierrot (Jazz) - 1943, Matisse
7 comentários:
Na verdade
utupia é nome de um país
imaginário
Será uma ilusão?
Será que o sol estaria mesmo pálido?
O espanta espíritos ajudaria?
Sinceramente não creio.
Parabéns pelo teu texto.
APC
Gostei. Sobretudo da forma como as palvras se vão diluindo até ao remate final.
Que haja sempre portas e janelas por onde passe o cheiro da liberdade... Benditos ventos.
Beijos!
Ana Paula,
Gostei bastante do texto, apesar de hermético e enigmático ou por isso mesmo!
Bj,
Manuela
Ana Paula,
Sei que estive, pelo menos uma vez, num dos seus Blogues, hoje entrei num e reconheci-o.
Só consegui agora entrar neste, tenho tido alguns problemas som o sinal baixo, o que me deixa irritada.
Gostei muitíssimo do seu texto, as palavras vão fluindo naturalmente e fazem-me lembrar não Virginia Woolf mas Joanne Harris, autora que eu também adoro.
Beijinhos
Ná
gostei muita da forma.
bendito o génio maligno que te soprou a liberdade.
um abraço
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