sexta-feira, 14 de maio de 2010

Espanta-espíritos

Numa tarde imensa o tempo não enganava e era curto. Para dizer ou descobrir todas as coisas imensas ali a saltarem do peito que tu não vias nem tinhas tempo para ver. Em contraluz uma ilusão quebrava as horas marcadas. Era o tempo de não haver tempo para desatar nós e laços que como desejos fortes lutavam para existir em liberdade.
Abriu-se uma janela que o vento trazia à vida. Há uma arrogância desumana no sentir que subestima os objectos inanimados. Mas nunca to disse. Não houve tempo. O frio invadia os corpos que acreditamos terem alma. Via-se ao longe um cortejo de carros rodando devagar. Alguém morreu mas isso que importa se o tempo está ocupado na lida que o corpo pede e é calor? De resto os mais bonitos cortejos deste tipo não são estes e sim aqueles que vês numa pintura de Matisse. Na morte a joie de vivre. Peguei então na ilusão tão pura tão bela e reconfortante. Mirei-a atentamente devorei todos os seus lados e analisei perspectivas. Havia uma brecha e por ela dei conta saíam todos os instantes da realidade que urge. Mas na obscuridade o corpo diz sempre beleza e é nela que queremos estar. Eu insisti e coloquei em exposição muito crua a ilusão. Sem jogo de luzes era difícil encará-la. Com cuidado afaguei-a não fosse explodir em milhares de nadas e depois de quebrada não saber como a reconstruir.
Não percebes nada. A ilusão é o cerne da questão. É simples: sem ela não conseguimos viver - foi essa voz de então e a frase dita o que ecoou até hoje nos espaços fechados. Abri eu mesma a janela para afugentar maus-olhados. Tenho pena nunca me ofereceste um espanta-espíritos. Por outro lado melhor assim não fosse ele demasiado eficaz ao ponto de espantar o meu. Julgo seria pena verdade depois não poderia pensar certas coisas que é preciso cogitar. 
Naquele tempo levaste a ilusão contigo. Há mais quem precise de se iludir. De lá para cá portas e janelas continuam a abrir-se movidas pela força do vento. Por elas entra um aroma de terra fresca e molhada. Certo génio maligno confessou-me ser este o cheiro da liberdade. Facto é acreditei nele ainda que a claridade do aroma trespasse com brutalidade os olhos quando eles ousam vislumbrar uma qualquer ínfima partícula da realidade.
O sol não está ao rubro e sim de um tom amarelo pálido. Há poeiras pequeninas que douram a atmosfera. Ontem alguém sorriu ao meu lado e era um sem-abrigo. A vida é um espectáculo. Gostava de descrever sensações milimétricas ao estilo da Virginia Woolf. Mas o mundo inteiro espera ser contemplado. Devo ir perder-me no tempo e agir.


Imagem: L'enterrement de Pierrot (Jazz) - 1943, Matisse

7 comentários:

Mar Arável disse...

Na verdade

utupia é nome de um país

imaginário

Anónimo disse...

Será uma ilusão?
Será que o sol estaria mesmo pálido?
O espanta espíritos ajudaria?
Sinceramente não creio.
Parabéns pelo teu texto.
APC

João Videira Santos disse...

Gostei. Sobretudo da forma como as palvras se vão diluindo até ao remate final.

tiaselma.com disse...

Que haja sempre portas e janelas por onde passe o cheiro da liberdade... Benditos ventos.

Beijos!

Manuela Freitas disse...

Ana Paula,
Gostei bastante do texto, apesar de hermético e enigmático ou por isso mesmo!
Bj,
Manuela

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Ana Paula,
Sei que estive, pelo menos uma vez, num dos seus Blogues, hoje entrei num e reconheci-o.

Só consegui agora entrar neste, tenho tido alguns problemas som o sinal baixo, o que me deixa irritada.

Gostei muitíssimo do seu texto, as palavras vão fluindo naturalmente e fazem-me lembrar não Virginia Woolf mas Joanne Harris, autora que eu também adoro.

Beijinhos

pin gente disse...

gostei muita da forma.
bendito o génio maligno que te soprou a liberdade.
um abraço

The Beggar Maid
Sir Edward Burne-Jones
Theseus in the Labyrinth
Sir Edward Burne-Jones

Obrigada!

Veio do aArtmus

Obrigada!

Veio do Contracenar

Obrigada!

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