sábado, 15 de agosto de 2009

Convite para jogar

Havia um céu um mar e um sonho. Também ele ou ela e uma fantasia. Pergunta-se então onde estaria aquele lugar de si que inventa a vida no instante em que segue a força da corrente. Olhavam-se e tudo sabiam deles no silêncio. À frente o tabuleiro de xadrez e as peças movidas calmamente adivinhando a escolha do outro antecipando demorando criando girando o artifício com a firmeza de um soberano que não se é. Não eram. Mas faziam-se no dominar do gesto do passo do acto da sua execução. Ocultavam a hesitação até que chegava o segundo no qual urgia avançar jogar a sério fazer acontecer a vida e o ser que nem sequer se conhece.
Convidados a jogar sentados desafiados frente a frente recolhidos no vigor do raciocínio. A janela ao fundo da sala aberta ao mar suave de carícias nos rochedos beijava plácido areais amarelos cintilantes ao luar. Pesadas cortinas levitavam carregadas de magia poesia transparentes promessas de um amor. O jogo decorria indiferente. Ao canto dos olhos a brisa chamava lá fora era ver e sentir o cenário desejado fingiam consigo não ser prazer não confessado.
Então ele disse: "Deixa-me ganhar e mostro-te um paraíso". E depois ela: "Vale assim tanto um paraíso?". Mas era só jogar ao longo da noite movendo o jogo no sentido dos desejos. Ao canto da boca estava uma palavra não dita mas que os dois escutavam no tempo todo concentrados nos passos nos gestos decisivos. Já que a arte é fingir e fingir é arte no jogo delicado refinado rendilhado absorvido em tudo o que são.
O paraíso andava por ali sim escoava-se por entre as horas. Colado aos corpos imóveis sussurrava prometia desviava a atenção. Jogaram de olhos fechados na força da concentração ignorando todas as delícias que mais tarde poderiam ser conquistas e posses de vitória. Conheciam sabiam não existem paraísos mas só os que se inventam e esses têm portanto a sua hora. Agora sim depois não. Agora não depois sim. Depois do jogo antes não.
E ela soltou a mão. Desprendida uma depois a outra virou o jogo. De pé fez birra com prazer derrubou todas as peças estrategicamente colocadas no tabuleiro. Num só gesto e fúria deitou tudo ao chão. Solenemente virou a mesa e as cadeiras de pernas ao ar. E ele zangado: "Não sabes jogar." Mas ela começou a andar devagar pela sala. Foi até à janela. Aí parou olhando para fora. Metodicamente acendeu um cigarro e ponderou acerca do exterior paradisíaco: "Há uma falha qualquer aqui". E ele: "Que queres dizer?". E ela movendo o cigarro ardente riscando o ar: "Só jogo num mundo de pernas para o ar. Que tal? E ofereces-me um livro."
Foi quando ele disse: "Partida marcada. Amanhã à mesma hora".


14 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Ela desconfiou do paraíso de quem não sabia perder, e jogou pelo paraíso seguro.

tiaselma.com disse...

Paraíso é o prêmio para quem sabe virar o jogo na hora certa.
E amanhã, sem a monotonia que já brotava das peças marcadas, as palavras os levarão a outros tabuleiros...

Beijocas, Ana.

vbm disse...

Esperei o gesto que previ,
o derrubar das peças do tabuleiro.

Incluiste-o na narrativa :).


Muito interessante,
e... intrigante,

a contraditória reflexão da jogadora
na exterioridade paradisíaca:

«Só jogo num mundo de pernas para o ar.»


Bom...
Interpreto assim, a psique feminil:
(ao contrário de RAA)

- «Não me dás a felicidade
que o próprio mundo me revela.
Só me permites um jogo fora do real.
Ao menos, dar-me-ás um livro
onde radicar a minha irrealidade.»

Leandro disse...

Olá Ana Paula,
Beleza, inteligência e feminilidade... Uma mistura sedutora, não? Sou um viajante intermitente pelas suas páginas, embora o tempo às vezes não permita sempre retorna à Ariadne. Parabéns pela produção e obrigado pela visita, abraços e até mais...

LM,paris disse...

...deve ser ai que vivo e que recuso , mesmo assim de avançar com os peos.no mundo virado do avesso...patino no labirinto,
de fio vermelho nao mao a desfiar os novelos . nunca aceitaria uma troca dessas, a do paraiso,
bem-feita, adoro imaginar o tabuleiro a virar-se,
as peças caindo ao ralentit...filmico,
o barulho certo.
a queda é uma boa maneira de aguentar com a perda de si.
o joelho no chao,
nao serve so para rezar!
vamos ao caos e nao aceitemos a competiçao, hà outras portas que dao para o vento, o beijo é bom para quebrar bocas.
intrigante, sim, gostei ana. Bjos, ariana continua, avançando.
LM

A.S. disse...

Ana Paula...

É uma delicia ler-te!...


Beijos...

casa de passe disse...

a minha "partida" é só no próximo Domingo.

Entretanto, fico-me,

por aqui,

lendo-te, lendo os outros e


re la xan do - me!!!!

(Loulou)

observatory disse...

http://web.es.amnesty.org/iran-lapidaciones/


ja viu? um mundo.

ARTISTA MALDITO disse...

Olá, Ana Paula

Venho deixar-lhe um beijo grande de muita amizade.

Virar a mesa, jogar... segundo as nossas próprias regras e assim se constrói o mundo, peça por peça.

É bom não saber jogar num mundo direitinho!

Boa praia, Ana Paula
Isabel

Mateso disse...

A arte mora sempre no xadrez e a vida não é mais do que multiplicidade de peças jogada ao sabor de um tabuleiro...
Um espanto de texto.
Bj.

Mateso disse...

A arte mora sempre no xadrez e a vida não é mais do que multiplicidade de peças jogada ao sabor de um tabuleiro...
Um espanto de texto.
Bj.

Mar Arável disse...

Quando as palavras jogam

se levantam e desmaiam

na assimetria

gera-se um equilíbrio instável

que de tão simples

se torna belo

Foi o que li

o seu milagre

CNS disse...

Um paraíso de pernas para o ar. Excelente texto!

Luiza Nunes disse...

Blog muito interessante! O texto "Tâmaras" está especialmente bonito.
Visite a minha página.

The Beggar Maid
Sir Edward Burne-Jones
Theseus in the Labyrinth
Sir Edward Burne-Jones

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