
Foi após tudo isto que sentiu sim todo o dia lá no fundo de si uma incomodidade teimosa a exigir atenção. Insistia no seu ser revolvido antes mesmo de um possível confronto com tais qualidades. Imaginava-se já prostrada perante o seu deus menor em submissa adoração atropelando o facto de poder não existir nada a admirar. Não queria um deus e sim um humano. Decepcionava-se. E era aquele fundo cansaço que começava a abater-se sobre si... Talvez hoje não criasse mais nada. Havia irritação latente e isso exasperava-a. Escolhera uma qualidade humana para criar um humano que pudesse amar. E era isso mesmo que escolhera aquilo que o faria comportar-se como um ser divino. Pedia agora a si mesma não para criar mas para destruir.
Ergueu-se da cadeira numa súbita decisão. Encostada à janela deixou o olhar vaguear na escuridão. Devagar debruçou-se na noite. O ar era húmido e despedia-se do verão. Percebeu um vulto. Perdia-se à volta dos carros parados. Insistente o olhar seguiu-o distraído. Sim reparou logo no como lhe pareceu: tão perdido quanto a sua falhada criação. Marcando o instante para sempre ele virou-se e viu-a. "Acredita? Não sei onde deixei o carro." Estranho e banal. Num relance olhou para trás mas a sala mal iluminada respirava o silêncio. Ele parecia cansado e nervoso passava as mãos pelo cabelo. "De que cor é o carro?" perguntou. Ele hesitou: "Se lhe disser que não sei... julga-me louco?" E a resposta segura: "Nem um pouco. Acho-o perfeito."
Os minutos passavam. Atrás dela uma serena escuridão parecia engolir toda a sala. No lugar da bancada havia agora uma grande mancha negra. Tudo parecia um lugar vazio. Lá fora as luzes amarelas faiscavam dissolvendo as sombras. Ele tinha-se encostado ao carro mais próximo e ela à janela. Os braços cruzados e os olhos brilhantes. Adivinhou-lhe o sorriso quando o ouviu de novo: "Estava aqui a pensar... noites falantes... são raras". "Hum... é verdade. Raríssimas. É preciso esquecer muito..." retorquiu.
Havia um relógio ao longe mas o tempo sumiu-se na noite. Era agora uma vaga impressão.
Os minutos passavam. Atrás dela uma serena escuridão parecia engolir toda a sala. No lugar da bancada havia agora uma grande mancha negra. Tudo parecia um lugar vazio. Lá fora as luzes amarelas faiscavam dissolvendo as sombras. Ele tinha-se encostado ao carro mais próximo e ela à janela. Os braços cruzados e os olhos brilhantes. Adivinhou-lhe o sorriso quando o ouviu de novo: "Estava aqui a pensar... noites falantes... são raras". "Hum... é verdade. Raríssimas. É preciso esquecer muito..." retorquiu.
Havia um relógio ao longe mas o tempo sumiu-se na noite. Era agora uma vaga impressão.
7 comentários:
Eu e "os resultados inesperados", muitas vezes decepcionantes, somos muito íntimos.
Um abraço.
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É a memória a evocar essências desmaterializadas que se esfumam na indistinção da inexistência...
Vale mais contemplar o mar, «a mais ininteligível existência não humana», como dizia Clarice Lispector
:)
Olá Ana, como de praxe resolvi dar uma passada pelo "Fio" e além desse belo texto, me surpreendi em saber que você nos colocou no rol de teus links. De verdade, obrigado pelo carinho, espero que nossas trocas possam aumentar.
Abraços do Brasil.
Saio daqui sempre maior... Mente e alma, por tantas formas, mexidas. Grata.
Beijoca de sua leitora.
Amiga
Gostei muito de aqui ter regressado e ter tido a oportunidade de ler este teu magnífico texto... os meus parabéns
Amanha seria uma honra para mim, poder contar com a tua presença no lançamento do meu livro
Com amizade
Luis
O acaso também nos apresenta uma pecinha para o puzzle. Se vai servir, mistério. Tal qual adivinhar um sorriso...
Beijocas.
Nunca, fica tudo arrumado na memória, como na vida...
Beijinho.
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