sábado, 6 de junho de 2009

Cavaleiros privados

Queria contar-te esta história, mas já era tarde e tinha que ir trabalhar. Agora que é noite e o ar húmido da madrugada parece colar-se aos meus pensamentos, é preciso aquecer o coração. Há neste sentir das trevas uma penetração de verdades que assim nos invadem, embora também se enfeitem com máscaras. Espera senta-te aí devagar ao pé do teu mundo de sonhos e fantasias. Junta-lhe o meu. Acho que de algum modo nos encontraremos.

Era uma vez um instante quando eu estava sentada num ponto alto do mundo e a tarde já se desviava de mim. Era um piquenique à beira do céu. Eu e o cavaleiro dourado da minha imaginação. Juntos sentados na relva trocáramos cerejas por entre as bocas. O aroma das flores era ainda mais forte lá no alto. Mas a tarde já se desviava de mim... O sol caía para nos abraçar antes de aparecer o luar. E as mãos agarravam os corpos enternecidas - tudo era fusão solar. O meu cavaleiro dourado mordiscava levemente o caule de uma flor campestre pequenina que se escondia nos meus cabelos por trás da orelha. Tudo era num suave riso. A tarde já se desviava de mim...
(E tudo se repetia um dia porque tu eras o meu cavaleiro assim dourado.)

Chegou a hora do sono das horas douradas. O cavaleiro partiu no seu cavalo branco cor de neve todo enfeitado com grinaldas de flores. No ponto alto do mundo eu fiquei só porque a tarde já se desviava de mim e eu tinha que escolher. Sentada acabei por me deitar pois havia cansaço para gastar. Fechar os olhos e imaginar que o mundo era um ser homogéneo e uniforme onde não havia nada para escolher a não ser ser. Mas um calor que vinha da noite e não se compreendia depois da tarde se ter afastado de mim estava ali. O ponto alto do mundo começou a descer e a queda era vertiginosa. Abri os olhos e olhei para baixo. No fundo que de mim se aproximava uma luz era vermelha e as trevas todas a rodeavam. Uma boca imensa era o mundo que me devorava. E de súbito o cavaleiro negro da minha imaginação irrompeu do meu eu profundo para me consumir e me devorar. Vinha num grande e poderoso cavalo negro todo cintilante e enfeitado de espadas. Tomou-me levou-me para viajar. Ao correr das trevas através da noite sempre para baixo. Levou-me de vez aquela tarde que se desviou de mim. Sim desintegrou-a. Vi-a estilhaçada mil e um fragmentos da tarde dourada. Vê como foi que tudo se passou: numa profundidade onde eu mergulhava e era esse monstro que eu encontrava todo feito de mim aquele que criava a imensa escuridão. Lá só sei que tudo era um lugar de devoção erguido num altar de sublimes crenças. E os deuses devoravam a quente o meu coração... para me descobrirem.

Foi na noite cerrada que abrimos os corpos e os consumimos fervorosamente. Num modo da mente tão avassalador que inventa imperturbável um toque de sangue na palma da mão. Ele prendia-me os braços inquietos desagitando os meus receios. Ali sentia-se o sugar da alma na embriaguês. Ela levava-nos voando pela noite sideral. E consumiam-se os desejos. Via-se o como do corpo que se estende para se contorcer ao gritar o eco de um mundo que nunca viu. E agora eu sentia que o cavaleiro negro puxava os meus cabelos e agarrava o meu ser para me desmembrar toda a vontade de quietude. Dilacerava-me com o tipo de olhar que nunca se impede de mostrar. Repara vê como foi e sente: que a viagem ao longo da noite é imensa e não se deixa ignorar. Também para ti há uma capa negra esvoaçante e também uma máscara - para te envolverem para fazerem o mistério de tudo o que ainda não foi explicado. Também para ti há um braço forte vestido de negro que te prende - é o ser que de ti se desprende e te quer revelar. É este o modo negro de um sentir que é preciso percorrer.
(E tudo se repetia nas noites porque tu eras o meu cavaleiro negro.)

Então eu sentada no topo do mundo no fundo do mundo fiquei só e o meu cavaleiro tão esplendorosamente a negro com os seus olhos claros incisivos por trás da máscara adormeceu. E eu tenho que ir trabalhar porque a manhã se aproximou de mim e foi mesmo agora.
Conto-te a história mas é porque há um cavaleiro negro e outro dourado que é preciso conhecer. Revejo os seus vultos além na minha imaginação. Passaram-se as horas, e os meus fantásticos cavaleiros estão adormecidos. Acordei-os há pouco para te falar. É fácil porque eles existem comigo e vivem assim deste modo que é aqui mesmo ao lado. Basta estender a mão e abrir o coração. Estão dentro de mim. E falo-te deles. No entanto quero que saibas: ando a inventar um cavaleiro híbrido.




7 comentários:

ze disse...

Aquilo que brilha e ou ensombra não é necessariamente um híbrido dois em um,
Pode sempre bem ser um versátil- complexo um em dois. Ou três.

E o(s) sonho(s) que cumpra(m) a sua missão de os unir ou separar.

vbm disse...

Nunca hei-de compreender nenhum sonho feminil, de todo distinto do meu próprio sonhar! :)

Mas consola-me a própria ininteligibilidade de todo e qualquer cavaleiro privado, negro ou dourado, porquanto só compreendo um cavaleiro andante, um beau geste, um don juan ou um luís de camões...

abraço,
v.

tiaselma.com disse...

Ana, seus cavaleiros são uma belíssima alegoria daquilo a que chamamos VIDA. Inventada ou vivida, será sempre híbrida em sua essência.

Viajei em seu texto. Maravilhoso!

Beijocas de Selma Barcellos.

Leandro disse...

Ótimo Blog, ja estou a seguir. Parabéns.

casa de passe disse...

Adorei o seu texto.

(devo confessar que prefiro cavaleiros andantes a cavaleiros privados!!!

verdade, verdadinha)


NINI

vieira calado disse...

Os sonhos só servem para sonharmos ainda mais...


Bjs

em azul disse...

Gostei dos cavaleiros... não sei se do que vai inventar! Seguramento do negro e do doirado!
Um beijo
em azul

The Beggar Maid
Sir Edward Burne-Jones
Theseus in the Labyrinth
Sir Edward Burne-Jones

Obrigada!

Veio do aArtmus

Obrigada!

Veio do Contracenar

Obrigada!

Obrigada!

Dedicatórias

Todos os textos - À Joana e à Marta