sexta-feira, 18 de junho de 2010

O meu mestre

Cada um de nós é como um homem que vê coisas em
sonhos e pensa que as conhece
perfeitamente e então acorda para descobrir
que não conhece nada.
Platão, Político


 Ele foi o meu mestre e por sinal um hedonista radical. Se me sorria lembro devia-se apenas ao meu olhar de espanto consagrado em cada lição. Somente o espanto era permitido como sabemos convém a um mestre de mérito em disciplina rígida de contestação. Pressentimentos vagos desvendavam  ensinamentos autênticos captados no ar denso e carregado de electricidade - se uma interrogação refulgia no meu peito. Mas as grandes lições não eram temas a realmente explorar ainda que circulassem algures no subterrâneo do meu pensamento. Devoravam-se a si mesmos no decorrer das horas criando o texto oculto dele e o meu silencioso. Estranho é ter que aprender de novo a ler quando já se sabe juntar palavras e criar frases com sentido. E o meu mestre exigiu de mim tudo isso. Estou-lhe grata pois o que mais há são línguas desconhecidas que não consigo falar nem ler. Com ele aprendi mais uma mas na verdade não sei qual é a secreta designação. Mesmo assim não sei nada de aramaico e digo-o só para marcar o exotismo do que aprendi. Nem sei desta língua antiga com todos os seus dialectos nem de outros tantos idiomas que para mim são (e serão) absolutamente estrangeiros. Mas aprendi a falar a língua do meu mestre. O idioma dele. Ainda hoje me espanto pois nunca permitiu que eu usasse dicionário. Nem gramática nem nada disso. É verdade foi tudo fruto da minha atenção. Silenciosa. É sabido que nas aulas não é bom falar ainda que se possa (e deva) intervir. Mas o meu mestre não permitia intervenções. Importantes mesmo eram as provas dadas no participar da acção. Seguir à risca o guião sem desvios ou improvisos. Muito menos admitia interpretações livres do seu manifesto hedonista. As coisas seguem-se à risca ou não se seguem. E por tudo isto e muito mais eu estou-lhe grata. No silêncio muito se congemina acerca de visões ortodoxas. Daí até começar a procurar no mundo a marca de uma certa perspectiva vai um só e pequeno passo. Logo a seguir encontram-se os sinais que é preciso saber ler enquanto inventamos o nosso próprio idioma. De início o medo tolhe a leitura proibida mas o que se começa a ver de olhos bem abertos logo arranca todo o nosso ser da inércia para o perturbante desvendar dos mistérios. Então um novo espanto é o que nos atinge como uma flecha nessa inesperada hora na qual tudo e até o próprio mundo é decifrado com o nosso recém-nascido código. Tudo isto eu devo ao meu mestre tão especial. Ele foi o outro e a diferença radical que é um caminho para chegar a mim. Já não lemos agora os mesmos livros. Mas eu conheço os dele e ele sabe muito dos meus. Porque o meu mestre aprendeu comigo mesmo sem ouvir a minha voz. Sair de um lugar e partir também é algo e diz-se. É por isso em igual que já não nos lemos imperiosamente um ao outro.

1 comentário:

vbm disse...

.

Belíssimo!

Platão ensinou-te assim?

Ou foi outro autor, o mestre
da língua do pensamento?

O livro que citas no post a seguir,
O Político, é também uma maravilha.

Eu por acaso, adoro Platão
mas é tão criticado
na filosofia contemporânea
que fico perplexo e hesitante
nos seus princípios essencialistas.


De qualquer modo,
se fosse filósofo,
haveria de demonstrar

que há só um mundo em Platão,
o da objectualidade inteligível, e nenhum
desvio da imanência percepcionável.

The Beggar Maid
Sir Edward Burne-Jones
Theseus in the Labyrinth
Sir Edward Burne-Jones

Obrigada!

Veio do aArtmus

Obrigada!

Veio do Contracenar

Obrigada!

Obrigada!

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