sexta-feira, 19 de março de 2010

Escrever

Já lá vai algum tempo... uma vez na escola, vejo uma colega, mais velha do que eu, de livro na mão a cada intervalo, aproveitando todos os minutos livres para a leitura. Professora de Português, fazia sentido, claro... Mas eu, sempre curiosa, queria muito saber que livro tão interessante estaria ela a ler... E, nessa manhã já longínqua, perguntei-lhe delicadamente: "É bom?... O livro?". Ao que ela respondeu afirmativamente, mas alertou-me para o facto de se tratar de uma leitura pessimista: o autor tinha morrido recentemente e, pelo que apurava com a sua leitura, tinha chegado ao fim da vida com uma perspectiva verdadeiramente negativa acerca do ser humano e do seu futuro. Lembro-me de assentir suavemente com a cabeça, mostrando ter tomado nota da sua apreciação, e agradeci-lhe pela sugestão de leitura, ainda que realizada indirectamente.
Por certo, ela já não se lembra dessa nossa conversa, mas eu nunca a esqueci. Não sei bem porquê. Certo é que a ideia de uma visão sem esperança acerca da humanidade (e do seu futuro) foi algo que me impressionou. Nessa época, eu acreditava que havia sempre uma saída para o maior dos males, ainda que uma dúvida desagradável volta e meia aparecesse a incomodar-me quanto a isso. Hoje, considero-me bem mais realista, mas também não posso afirmar-me uma verdadeira pessimista. Claro que o caso continua a interessar-me... Foi certamente por isso que, passados uns bons anos, dou por mim casualmente frente ao dito livro como se ele estivesse precisamente agora à minha espera. Eu tinha-o marcado na minha memória, mas nunca movera passos para o encontrar activamente. E eis que ele me surge num discreto mas marcante convite à sua leitura: escrever, de Vergílio Ferreira. Chegada finalmente a hora de o ler, é o que tenho feito. Sim, é efectivamente pessimista, não tenho como alterar esse facto. No entanto, é imperdível  - ele interpela-nos. Esta é, seguramente, uma das mais nobres qualidades literárias, e assegurada, sem sombra de dúvida, por este último livro do autor, publicado postumamente. É nele que podemos encontrar passagens tão belas e profundas como estas:

«É o que sobeja, doce inquietação, neblina que a tudo dissolve, procura descentrada de não se sabe o quê e pouco a pouco uma emergência sem contornos, o esboço confuso do que não pode ter nome nem existir. Repousar aí. Sorrir aí.»

«Fala-se às vezes de "inspiração" a propósito de quem escreve uma obra. Mas nunca se diz isso de quem a lê. Mas lê-la é escrevê-la outra vez. E é preciso estar-se inspirado para o conseguir bem. A inspiração possível de quem escreve um livro cumpre-se nele sem mais para o autor. Mas a de quem o reescreve, ou seja lê, é sempre variável.» 

[Excertos de escrever, Vergílio Ferreira]

Imagem: pesquisa do Google

6 comentários:

tiaselma.com disse...

Verdadeiras e interessantes as duas passagens que escolheste. Levaram-me a longa reflexão e vontade de ler mais.

Grata, Ana Paula.

Beijocas

Ana Paula Sena disse...

Querida Selma, obrigada pela tua presença sempre constante e carinhosa :)

Um grande beijinho e... até já, no teu bonito espaço!

Mar Arável disse...

Boa memória

de Um Virgílio

que merece ser recriado

Fernando K. Montenegro disse...

Curiosamente, tenho este livro na mesa de cabeceira! Os pensamentos escritos, bem como os supostos últimos apontamentos do Vergílio, são brutalmente íntimos. Quer para o leitor quer para ele. Toda a questão da velhice e da impotência associada, assunto que o massacrava, nota-se desde da primeira página. O Vergílio é um dos meus escritores favoritos. Não conheço muita gente que goste, mas foi bom passar por aqui e ler este post, e no fundo, reconhecer-me...

Manuela Freitas disse...

Olá Ana Paula,
Vergílio Ferreira, esteve sempre no lote dos meus escritores preferidos, li alguns dos seus livros, o que mais me marcou foi «Para Sempre». Filosoficamente existencialista e de facto muito triste!...São leituras arrasadoras!?...Tive uma tendência muito grande para o pessimismo/niilismo, agora o relativismo é dominante.
Gostei das passagens que transcreveu.
Uma boa semana e obrigada pelas palavras que me deixou,
Beijinhos,
Manuela

A.S. disse...

Ana Paula,

Quero dizer-te que o Vergilio Ferreira é o meu ídolo!
Essa obra "Escrever" acompanha-me sempre. São 378 pequenos textos e cada um deles, belissimamante escritos, são verdadeiras lições de vida!
Acho que NUNCA se fez verdadeiramente justiça aquele que foi dos maiores escritores das duas últimas gerações! Acho que todos sabemos os motivos!!!

Abraços
AL

The Beggar Maid
Sir Edward Burne-Jones
Theseus in the Labyrinth
Sir Edward Burne-Jones

Obrigada!

Veio do aArtmus

Obrigada!

Veio do Contracenar

Obrigada!

Obrigada!

Dedicatórias

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