sábado, 19 de setembro de 2009

Já não me lembro

Agora que estava tudo arrumado todas as coisas colocadas nos seus lugares podia começar a pensar vaguear pelos labirintos da memória. Recordava alguns instantes em especial e não sabia o por que sim desses e o por que não de outros. Seria absurdo justificar as coisas quando se viviam coladas à pele dos sonhos. Claro ela ainda sonhava embora fossem sonhos com a vida de agora metida pelo meio. Chegada a hora gostava muito de ficar ali sentada à janela lá fora um mar bem próximo a encantá-la ao luar porque fazia passar uma série de imagens onde via tudo de novo ainda que de forma esbatida. As cores eram exactamente o que eram sem qualquer pincelada de fantasia. Mas não o lamentava. Ali estava ele e ali estava ela mas as mãos pendiam caídas ao longo dos corpos sem se encontrarem. Entretinha-se agora e desde há algum tempo atrás a criar mais do que a recordar ou a repisar esses desencontros. O novo passatempo inquietava-a mas colocava-a na posição de deusa criadora. Mal conseguia resistir a esse afã de dar vida juntando peças inertes porque isoladas. Olhou em volta e os olhos procuravam o ser amado que ela própria animava. Ao lado na bancada mal-iluminada espalhavam-se as diversas qualidades disponíveis. Subtilmente emitiam um doce apelo como que um lamento pediam que as compusesse e delas fizesse um todo essencial. Mas às vezes tinha medo de que o ser assim criado passasse da essência à existência e a obrigasse a confrontar-se com ele. Por isso adiava cada avanço criador. Por entre a semi-obscuridade pressentia a chama e a voz de si mesma obrigando-a a entregar-se à vertigem da escolha de cada detalhe desse fino recorte psicológico que amava. Sabia que a vida o é porque surpreende. Por isso temia resultados inesperados. Cada dia que passava aumentava esse crescendo de expectativa face ao imprevisto. Ontem mesmo tinha optado por acrescentar ao estranho puzzle dessa personalidade-ideal o desejo incontrolável de exibição e a busca de adoração. Fizera-o não porque tudo isso fosse algo admirável para si mas precisamente pelo contrário. Esperava assim não criar um ser demasiado perfeito e conseguir evitar o tédio daquele modo de ser de quando tudo está certo.

Foi após tudo isto que sentiu sim todo o dia lá no fundo de si uma incomodidade teimosa a exigir atenção. Insistia no seu ser revolvido antes mesmo de um possível confronto com tais qualidades. Imaginava-se já prostrada perante o seu deus menor em submissa adoração atropelando o facto de poder não existir nada a admirar. Não queria um deus e sim um humano. Decepcionava-se. E era aquele fundo cansaço que começava a abater-se sobre si... Talvez hoje não criasse mais nada. Havia irritação latente e isso exasperava-a. Escolhera uma qualidade humana para criar um humano que pudesse amar. E era isso mesmo que escolhera aquilo que o faria comportar-se como um ser divino. Pedia agora a si mesma não para criar mas para destruir.
Ergueu-se da cadeira numa súbita decisão. Encostada à janela deixou o olhar vaguear na escuridão. Devagar debruçou-se na noite. O ar era húmido e despedia-se do verão. Percebeu um vulto. Perdia-se à volta dos carros parados. Insistente o olhar seguiu-o distraído. Sim reparou logo no como lhe pareceu: tão perdido quanto a sua falhada criação. Marcando o instante para sempre ele virou-se e viu-a. "Acredita? Não sei onde deixei o carro." Estranho e banal. Num relance olhou para trás mas a sala mal iluminada respirava o silêncio. Ele parecia cansado e nervoso passava as mãos pelo cabelo. "De que cor é o carro?" perguntou. Ele hesitou: "Se lhe disser que não sei... julga-me louco?" E a resposta segura: "Nem um pouco. Acho-o perfeito."
Os minutos passavam. Atrás dela uma serena escuridão parecia engolir toda a sala. No lugar da bancada havia agora uma grande mancha negra. Tudo parecia um lugar vazio. Lá fora as luzes amarelas faiscavam dissolvendo as sombras. Ele tinha-se encostado ao carro mais próximo e ela à janela. Os braços cruzados e os olhos brilhantes. Adivinhou-lhe o sorriso quando o ouviu de novo: "Estava aqui a pensar... noites falantes... são raras". "Hum... é verdade. Raríssimas. É preciso esquecer muito..." retorquiu.
Havia um relógio ao longe mas o tempo sumiu-se na noite. Era agora uma vaga impressão.


7 comentários:

Maria Josefa Paias disse...

Eu e "os resultados inesperados", muitas vezes decepcionantes, somos muito íntimos.
Um abraço.

vbm disse...

.

É a memória a evocar essências desmaterializadas que se esfumam na indistinção da inexistência...

Vale mais contemplar o mar, «a mais ininteligível existência não humana», como dizia Clarice Lispector

:)

Leandro disse...

Olá Ana, como de praxe resolvi dar uma passada pelo "Fio" e além desse belo texto, me surpreendi em saber que você nos colocou no rol de teus links. De verdade, obrigado pelo carinho, espero que nossas trocas possam aumentar.

Abraços do Brasil.

tiaselma.com disse...

Saio daqui sempre maior... Mente e alma, por tantas formas, mexidas. Grata.

Beijoca de sua leitora.

Luis Ferreira disse...

Amiga

Gostei muito de aqui ter regressado e ter tido a oportunidade de ler este teu magnífico texto... os meus parabéns

Amanha seria uma honra para mim, poder contar com a tua presença no lançamento do meu livro

Com amizade
Luis

tiaselma.com disse...

O acaso também nos apresenta uma pecinha para o puzzle. Se vai servir, mistério. Tal qual adivinhar um sorriso...

Beijocas.

Lord of Erewhon disse...

Nunca, fica tudo arrumado na memória, como na vida...

Beijinho.

The Beggar Maid
Sir Edward Burne-Jones
Theseus in the Labyrinth
Sir Edward Burne-Jones

Obrigada!

Veio do aArtmus

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Veio do Contracenar

Obrigada!

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