quarta-feira, 8 de abril de 2009

A faca no divã

Uma pontada

Ao fundo da rua, a multidão apinhava-se, concentrada à volta do divã. A sessão estava marcada para as três da tarde. Ele ainda não tinha chegado, e eu dirigia-me devagar para o local combinado, prestes a desempenhar o meu papel. Na verdade, eu procurava uma solução para algo que me atormentava desde há muito tempo. Ele tinha-me prometido que tudo se resolveria pouco a pouco, três ou quatro sessões bastariam para libertar os meus fantasmas. Eu achava estranho que ele falasse deles com tanto à-vontade. Até parecia que os conhecia, que eram dele e não meus. Afinal, eu sentia-os, é certo, mas nunca os tinha visto frente-a-frente. Nem era capaz de lhes dar um nome! Ao passo que ele...era tu-cá, tu-lá com eles - se me fiasse no seu tom de segurança crescente, de cada vez que nos encontravamos lá no consultório.

Os espectáculos de rua eram cada vez mais procurados. Gratuitos, distraíam quem passava a caminho do emprego, "matavam" o tempo de quem vagueava pela cidade, sem rumo certo ou definido... Um caso de sucesso gritante, como ele tinha feito questão de focar para me convencer. Agora... eu tinha parado um pouco antes do local e o sítio já me assustava, vislumbrado ao longe por entre os fatos de tons claros dos homens e as blusas primaveris das raparigas - tinha um quê de cadafalso ao qual eu estava condenada. Claro que seria paga. Bem paga, aliás. Nada ficaria a dever pelas futuras sessões, ao longo das quais ele eliminaria de vez os meus fantasmas. Era esse o acordo, do tipo "pegar ou largar". Como eu fazia fé na sua reputação de psicanalista famoso e milagroso... enfim... decidi arriscar. As visões fantasmáticas pesavam no meu dia-a-dia. Sem forma clara e definida, sem rosto ou voz, eram uma presença inquietante que pairava à minha volta: até nas roupas que vestia, por vezes no abrir da mala para tirar qualquer coisa, o ar carregava-se da sua essência. Um perfume que se evolava dos meus objectos pessoais, invasivo ao ponto de os largar como se me queimassem as mãos.

Os meus amigos diziam-me que eu estava a ficar louca, mas eu tinha lido nos pesados livros da biblioteca que os mais loucos eram os ditos normais: "...quem não tinha fantasmas era cego!". Tão simples quanto isto. Gente importante dixit. Mas eu sentia-me uma normal verdadeira demais, e desejava não ver nada mais além... cegar só um pouquinho para descansar de tanta percepção extra-sensorial.
Reparei, então, que ele tinha chegado ao local nesse mesmo instante. Camisa branca luminosa, ar solene propício à ocasião. Sim, tudo se resolveria. E a nossa conversa, feita teatro do mundo, seria altamente eficaz - palavras suas, ditas, reditas, e também escritas em inúmeros ensaios ditos psico-analisantes, convertidos em best-sellers pela fúria do bem-viver da multidão ociosa.

Estava na hora... O divã esperava por mim. Aproximei-me devagar mas decidida, e nem o olhei quando me estendi no semi-leito avermelhado. As pessoas tinham aberto um espaço à minha volta em sinal de respeito. O silêncio agora era fatal. Calaram-se os motores dos carros nas ruas transversais e paralelas, a música deixara de se ouvir lá dentro nos cafés e restaurantes - portas abertas, todos cá fora, espiando ao longe. Ele prometera-me: "...nada de câmaras ocultas".

Reclinada no divã, a minha alma libertava-se deste mundo ao olhar o azul brilhante do céu acima de mim. Comecei a sentir a forte presença deles... Esperei, numa confiança algo receosa, pelo meu mestre e pela sua direcção espiritual. Foi quando senti uma dor estranha nas costas. O lado esquerdo do meu corpo estava quase paralisado. A sensação era suportável, mas incómoda, além de inexplicável. Ele começara a falar, mas eu mal o ouvia. Tentava perceber concentradamente o que se estava a passar comigo. As suas palavras iam aumentando a dor, ao ponto de ter que soerguer-me um pouco, ficando então numa posição caricata para o público. Procurei olhar disfarçadamente para a superfície do divã... E vi, sei que vi: o brilho cintilante do aço e o cabo de uma faca. De repente, ela recolheu-se, escondida no forro aveludado. Encostei-me de novo e o mundo acalmou. Finalmente, concentrei-me nas suas palavras...

(continua)


Imagem: pesquisa do Google

5 comentários:

vbm disse...

Baralham-se-me as ideias em matéria de fantasmas e simulacros e custa-me entender que as pessoas neles se presidiem...

Suponho que, perversamente, a mente se fixa na parte que toma como um todo. Seja por nisso ter mais comodidade, mais prazer ou menos dor, seja por razões de eficácia e domínio na acção, o certo é a ordem natural perverte-se, a harmonia do vivente no meio perde-se.

Por muito que a abstracção convenha para um olhar
lúcido do mundo será sempre desastroso
«tomar a nuvem por Juno»! :)


Já Platão advertia:

«a arte de imitar está muito
afastada do verdadeiro; e

a razão por que faz tantas coisas é que só toma
uma pequena parte de cada uma,
e esta mesmo não passa
de simulacro ou
fantasma.»


...
:)

meus instantes e momentos disse...

muito bom teu blog, foi bom conhecer. Gostei daqui.
Tenha um bela Pàscoa.
Maurizio

vieira calado disse...

Desejo-lhe um bom resto de

Domingo de Páscoa.


Bjs

Mateso disse...

Ou o verdadeiro sentido real da vida...
Foi bom ler-te de novo.
Bj.

Anónimo disse...

gostei muito de ler, ana paula. um relato na primeira pessoa que diz respeito a todos nós, ao quanto nos custa revelarmo-nos perante alguém que nos escrutina a alma. espero pela continuação :) beijos!

The Beggar Maid
Sir Edward Burne-Jones
Theseus in the Labyrinth
Sir Edward Burne-Jones

Obrigada!

Veio do aArtmus

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Veio do Contracenar

Obrigada!

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Dedicatórias

Todos os textos - À Joana e à Marta